Ao acordar lembrei-me de Peter Doyle. Deviam ser seis horas, na austrália em frente um pássaro cantava. Não vou jurar que cantasse em inglês, só os pássaros de Virgínia Woolf têm privilégios assim, mas o júbilo do meu pisco trouxe-me à memória a cotovia dos prados americanos e o rosto friorento do jovem irlandês, que naquele inverno Walt Whitman amou, sentado ao fundo da taberna, esfregando as mãos, junto ao calor do fogão.
Abri a janela, na escassa claridade que se aproximava procurei, em vão, a delícia sem mácula que me despertara. Mas de repente, uma, duas, três vezes, ouviram-se uns trinadinhos molhados, a indicar-me um sopro de penas que mal se distinguia da folhagem. Então, invocando antiquíssimas metáforas do canto, peguei no livro venerando que tinha à mão e, de estrofe em estrofe, fui abrindo as represas às águas do ser, como quem se prepara para voar.
Eugénio de Andrade . “Walt Whitman e os Pássaros”