Janeiro 1915
Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não sei – nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectáculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche: levo-o para a cova, para remoer durante séculos e séculos, até ao juízo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas perdidas... Fugi sempre dos fantasmas agitados, que me metem medo. Os homens que mais me interessaram na existência foram outros (...)
Raul Brandão, Memórias